#002 - A distopia não é o futuro, é o nosso presente
Nesta semana li o livro “Se tu vivesses o que eu vi” onde a médica pediátrica Mónica Costeira conta o seu trabalho em alguns dos piores sítios do mundo como o Sudão do Sul ou o Iémen. Também esta semana num zapping rápido pela TV parei para rever um bocado de um filme onde numa sociedade futurística a elite vive com todos os luxos numa gigantesca estação espacial (Elysium) e a restante humanidade luta diariamente pela sua sobrevivência num planeta semi-devastado. A ligação entre este livro sobre o presente e a do filme sobre o futuro, à partida parece forçado, mas estamos errados se pensarmos assim.
O livro de Mónica Costeira é bastante pesado, cheio de relatos de pessoas deslocadas, sem acesso a alimento, sujeitas a todo o tipo de violência, incluindo sexual contra as mulheres. Também, inevitavelmente, não têm acesso a cuidados médicos adequados.
Doenças como a malária matam anualmente centenas de milhares de pessoas (essencialmente crianças) e mesmo coisas simples como diarreias ou infeções respiratórias causam um nº surpreendentemente grande de vítimas. São mortes facilmente evitáveis com condições mínimas de vida, mas outro aspeto que rapidamente está a acontecer é que nos países mais ricos as pessoas com determinadas patologias mais raras podem sobreviver e nos paises mais pobres não.
Monica Costeira no livro dá o exemplo de uma enfermeira que estava na mesma missão dos Médicos Sem Fronteiras onde isto fica claro:
“Um dia, quando estávamos a conversar, mostrou-me a cicatriz que tinha no peito e contou-me que nasceu com uma cardiopatia congénita chamada Tetralogia de Fallot. Trata-se de uma cardiopatia incompatível com a vida, sem tratamento cirúrgico. Felizmente, ela nasceu num país, numa sociedade e numa família que lhe permitiriam ter acesso a um tratamento médico”
Mas a realidade é cruel neste exemplo de uma criança com cardiopatia no Sudão do Sul que morreu na impossibilidade de uma cirurgia:
“O Abdallah tinha uma cardiopatia congénita. Estávamos a fazer todos os tratamentos médicos disponíveis que pudessem ajudá-lo, mas ele precisava de cirurgia e estava a ficar cada vez pior. Sentia-me desesperada, sentia que estava a colocar remendos num barco que se estava a fundar. Não íamos conseguir salvar Abdallah”
Esta é uma constante do livro. Dois mundos: um com condições de vida adequadas e cuidados médicos que permite até em doenças mais raras poder-se ter uma hipótese de vida normal; no outro as pessoas estão condenadas a morreram à mais pequena contrariedade. As pessoas desse mundo mais rico têm relativa indiferença à miséria que podem encontrar a poucos milhares de quilómetros, preferindo acreditar (para acalmar a sua consciência), que a culpa é das pessoas desses países, que não há nada que possam/devam fazer e que não têm em nenhuma circunstância de lhes acolher quando batem à porta. O facto destes países mais ricos alimentarem com armas muitos dos conflitos nos países mais pobres ou a forma como estabelecem as relações comerciais para poderem perpetuar as desigualdades, também não os preocupa.
Voltando ao filme Elysium é difícil ver aquilo como uma distopia futura. A indiferença com que Delacourt (interpretada por Jodie Foster) manda abater as naves de refugiados que tentam chegar a Elysium ou como Carlyle (interpretado por William Fichtner) vê os trabalhadores da Terra como apenas um meio de produzirem bens para ele, não é algo do futuro é algo do nosso presente.
Muitas pessoas no Ocidente levam uma vida muito preocupada com o acessório, com as banalidades do dia-a-dia, não dando o devido valor ao facto da maioria ter acesso a habitação, alimentação e cuidados de saúde, aspeto que durante grande parte da história da humanidade os seus países não tiveram. Já se esqueceram que doenças como a malária foram comuns na Europa e nos EUA.
Queixam-se diariamente, mas vivem numa Elysium com luxos que a maior parte da humanidade não tem.
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