Uma notícia do Expresso desta semana analisa o mais recente Relatório de Migrações e Asilo onde é referido que já existem mais de 1 milhão de imigrantes com residência legalizada em Portugal (10% da população), não contando ainda com os processos de regularização em curso na AIMA.
Nos comentários à notícia aparecem vários lamentos pela alegada “substituição cultural em curso” e gostaria também de comentar da minha perspetiva, nascido em Portugal, mas com origem nos PALOPs.
Vai ser um texto longo onde abordo sem tabus todas as questões à volta desta temática.
Quem pode realmente sentir-se português?
Nascido em Lisboa, nunca tive outra nacionalidade que não a portuguesa. No entanto desde a mais tenra idade a frase que mais ouvi foi “De onde és?”. Desde muito cedo percebi que a nacionalidade não é afinal algo que estivesse no meu bilhete de identidade: é atribuída informalmente por uma comunidade que define o que é um “português a sério” e a cor da pele é um dos critérios. Esta foi uma constante da 2ª geração africana, não conhecendo em profundidade os países de origem dos seus pais, mas não sendo considerados verdadeiros portugueses, mesmo tendo nascido e vivido sempre em Portugal.
A verdadeira substituição cultural
Um dos aspetos onde existem mais equívocos é na análise desta questão. Cada sociedade tem um conjunto de matrizes culturais que são dominantes. Estas matrizes são transmitidas por canais poderosos como a família, o sistema oficial de ensino, a comunicação social e agora redes sociais.
A verdadeira influência será sempre muito mais poderosa do lado maioritário para o lado minoritário e não o contrário. Os imigrantes têm uma enorme heterogeneidade, com uma multiplicidade de culturas e o que realmente acontece é que progressivamente esta cultura dos países de origem vai desaparecendo nos seus filhos. Não fui muitas vezes ao país de origem dos meus pais, não sei fazer nenhum prato típico da sua culinária; compreendo, mas não falo o crioulo desse país, aliás falo um “perfeito” português com sotaque lisboeta.
Quando vemos a comunidade africana tentar dinamizar e promover as suas origens é antes de mais uma reação a este desaparecimento e uma tentativa de ter uma pertença a uma comunidade que não os exclua. Esta visão pode assumir por querer que a história que se ensina na escola não despreze os povos africanos e que se reponha uma verdade histórica que não promova o luso-tropicalismo. É uma situação conflito interno e externo permanente, principalmente em situações onde existe uma segregação do espaço físico onde vivem estas comunidades africanas e cada um procura resolver este conflito da melhor forma que consegue. É por isto tudo que não entendo como alguém realmente acredita que a cultura africana que recebi dos meus pais é uma “ameaça”. O problema é justamente o inverso.
As novas vagas de imigração
Efetivamente nos últimos anos as vagas de imigração foram mais intensas com o Brasil à cabeça. Antes de mais a imigração ocorre sempre que existe disponibilidade de trabalho e pouco se pode fazer para evitar, apenas se pode escolher se estas pessoas estão numa situação de residência legalizada ou não. Sem os imigrantes muitos setores colapsariam e o crescimento económico seria muito inferior, para já não falar da sustentabilidade da segurança social. A baixa taxa de natalidade sentida desde os anos 80, teria de fazer mossa 2-3 décadas mais tarde, com falta de mão-de-obra em vários setores em especial naqueles menos apreciados por uma geração de portugueses que com maior escolaridade prefere outro tipo de empregos, se necessário no estrangeiro.
Esta vaga recente de imigração teve um efeito curioso em mim. Causou-me apesar de tudo uma maior sensação de conforto, como se de repente a sensação permanente de ser estrangeiro no país onde sempre vivi se tivesse diluído, existindo 10-20% da população com esta origem. Por outro lado, isto acabou por intensificar o sentimento anti-imigrantes, o que acaba inevitavelmente por me afetar negativamente.
Mas este sentimento anti-imigrantes é complexo, com diversas intensidades e “modalidades”. Vou ter a honestidade intelectual de procurar entendê-lo a seguir.
O sentimento anti-imigrantes
Numa análise mais imediata existem 2 lados opostos:
Extrema-direita: Este grupo é constituído por pessoas com forte preconceito racista e xenófobo independentemente do nº de imigrantes que existam. Em Portugal e talvez pelo 25 de Abril de 1974, estas pessoas estiveram escondidas, envergonhadas em expor a sua opinião, situação que agora se tornou muito mais fácil com a normalização do partido Chega, que atualmente detém 50 deputados no parlamento.
Esquerda Multicultural: Do outro lado temos uma geração pós-25 de Abril, muito encostada à esquerda, habituada à diversidade cultural e desejando essa diversidade como algo positivo e que não vê como podem existir problemas com um maior fluxo de imigrantes.
No entanto, só talvez no reino das redes sociais como Twitter ou caixa de comentários de jornais online temos esta dualidade. Existem muitas camadas intermédias, mais numerosas e que não são fáceis de classificar. Vou tentar identificar duas, uma mais ao centro e outra mais à direita:
Defensores do estilo de vida ocidental: Existe um grupo maioritário que são cidadãos que não se opõem à imigração, que não lhes choca ter-se 10% de imigrantes e são capazes de ter sentimentos positivos por verem um imigrante bem-integrado. No entanto, de modo contrário, facilmente podem ver alguém não integrado socialmente como estando a mais no país. São mesmo capazes de ter sentimentos de forte desprezo por imigrantes que consideram que não têm comportamentos e estilo de vida típicos de um país ocidental ou que não se querem “integrar” considerando que estão a originar uma guetização cultural. Convém acrescentar que este grupo não expressa este lado mais negativo sobre imigrantes nas redes sociais e sente mesmo alguma vergonha em fazê-lo, mas em conversas mais informais é possível perceber que é isto mesmo que pensa. Pode parecer paradoxal, mas mesmo filhos de imigrantes de vagas mais antigas podem ter este sentimento por vagas mais recentes de imigrantes que não considerem “civilizados”.
Tementes da grande substituição cultural: Normalmente são um grupo mais conservador que são sensíveis à percentagem de imigrantes de um país. A diferença face à extrema-direita é mesmo essa. Ter 2% de imigrantes não lhes chateia, ter 10% já é demais. Consideram que a grande prioridade é parar a imigração. São muito sensíveis a noticias de criminalidade praticadas por imigrantes e um medo irracional de se tornarem uma minoria, num país onde possam desaparecer todas as suas referências culturais a que estavam habituados.
O que podemos fazer para que o tema da imigração não seja fonte de crescente de polarização?
Estes grupos que referi acima não são estanques e a minha preocupação é como não radicalizar a sociedade portuguesa face ao maior fluxo de imigração por forma a não termos qualquer dia um parlamento maioritário de partidos de extrema-direita como naquela peça de teatro distópica que tanto tinta fez correr há alguns anos. Não é fácil abordar este tema para mim e também para quem está politicamente mais alinhado à esquerda onde o multiculturalismo não é um problema e pelo contrário uma virtude. Mas a esquerda terá de entender que o puxar da corda para o seu lado não pode ser feita com tanta força que esta parta, catapultando o lado oposto para mais longe em vez de se aproximar das suas opiniões.
Preparar as infraestruturas sociais para maior fluxo de imigrantes: Este tema foi relativamente desprezado pelos governos recentes e tem-se intensificado os seus efeitos. A questão é que setores como a educação, saúde, transportes, já tinham os seus problemas. No entanto sem este fluxo de imigrantes não seria possível o país continuar a crescer e estes têm o mesmo direito de acesso a estas infraestruturas. Mas se ficar o sentimento que os problemas só passaram a existir por causa dos imigrantes (bem sabemos que não é verdade, mas não interessa) é uma perfeita desculpa para a maior polarização neste tema e o crescimento da extrema-direita.
Evitar guetos populacionais: Não é um tema novo. Quando era criança a pobreza em Portugal era extrema, com muitos bairros de barracas. No entanto após a sua erradicação foram criados muito bairros com caraterísticas de exclusão. Viver num sítio como onde cresci é estar à margem da sociedade, num local mais pobre, com menor qualidade de ensino, como menores perspetivas futuras profissionais. Alguma da comunidade africana de 2ª e mesmo 3ª geração sente esta exclusão social como se estivesse no fundo da pirâmide social e económica. Com este grande fluxo populacional era importante não repetir os mesmos erros, embora sinta que em especial com a comunidade brasileira exista esta maior dispersão e não a criação de guetos. O problema da habitação por seu lado é um problema nunca resolvido em Portugal e numa política oficial que favorece os proprietários nunca teremos casas baratas ou rendas baratas.
Promover uma cultura de tolerância e diversidade: Esta é uma parte que assumo que é uma tentativa de programação cultural. Não vejo como possa ser feito de outra forma. Temos mesmo de usar a escola, comunicação social e redes sociais para promover ideias de tolerância para com a diferença, respeito e empatia pelo próximo. Para mim que me considero “cidadão do mundo” e defendo os direitos humanos mais básicos parece-me completamente pacifico esta ideia, mas para outros não. Como tal eu entendo que esta promoção tem de ser feita de forma muito suave ou mesmo dissimulada, sem introdução ou imposição de vocabulário novo/estranho cujo significado as pessoas desconhecem e não querem usar. Terá mesmo de usar princípios básicos universais como igualdade, liberdade e solidariedade na sua linguagem, com a finalidade primordial de nos tornarmos melhores pessoas.
Conclusão
O maior erro que se pode cometer neste tema de imigração é ignorá-lo. Os setores políticos mais moderados incluindo os setores mais à esquerda terão de entender o que sente a maioria da população, mesmo que considerem duvidosos esses sentimentos. Teremos de inverter o caminho de radicalização recente, mas para tal é preciso atacar os problemas que surgem e não ficar de braços cruzados cuja consequência será apenas o crescimento dos partidos de extrema-direita
Links:
Noticia Expresso: https://expresso.pt/sociedade/2024-09-19-ha-1.044.606-imigrantes-legais-em-portugal.-camila-ainda-nao-entra-nesta-conta-faa66ae6
Relatório de Migrações e Asilo 2023: https://aima.gov.pt/documents/rma-2023.pdf